QUANDO OS “MARCIANOS” VISITARAM A SERRA DA GARDUNHA
Envolvida em grande deslumbramento natural, surge a encosta da Serra da Gardunha como palco de um bombástico acontecimento com duração muita curta na sua desmitificação.
Num furo sensacional, o “Diário de Lisboa”, de 24 de Setembro de 1954, destacou uma suposta aterragem de um “disco voador”, com observação de entidades “marcianas”, que teriam cerca de 2,50 metros de altura!
Afinal, o distrito de Castelo Branco tinha guardado, nos anos 50, a sua novela de ficção. Com razões de chamar a atenção à falta de estrada para a aldeia Espadana (Almaceda), assim como, de litígio e inimizades entre vizinhos e conhecidos, o caso fez apaixonar a opinião pública num enredo envolto de mistério, com rodeios estranhos sobre um hipotético acontecimento de outros mundos.

O destaque do jornal “Diário de Lisboa” noticiando a hipotética aterragem do “disco voador” em Almaceda (Citação: “Diário de Lisboa”, nº 11429, Ano 34, Segunda, 27 de Setembro de 1954, Fundação Mário Soares / DRR – Documentos Ruella Ramos)
Tudo começou num destaque do jornal a noticiar uma ocorrência baseada numa carta chegada á redação, que dava a conhecer a aparição de um disco voador e a visita de seres em Almaceda.
A carta, datada de 27 de Setembro de 1954 e dirigida ao “Diário de Lisboa”, anunciava que “vimos aparecer do lado Leste um objeto redondo, deslocando-se a grande velocidade, que lançava em todas as direções faíscas multicores”(1) – referia o texto. “Após alguns minutos de lúgubre silêncio, vimos abrir uma porta por onde saíram dois homens que não tinham menos de 2,5 metros de altura e [eram] excecionalmente fortes, vestidos dos pés à cabeça com fatos que pareciam de alumínio brilhante, sem costuras nem bolsos.”
“Tomo a liberdade de junto enviar a V. Exª, a fim de lhe dar a publicidade que lhe achar conveniente, um relatório do que acabo de presenciar sobre os discos voadores”, adiantou.
Confesso que nunca acreditei na existência de tais engenhos, levando sempre o caso para fenómenos atmosféricos ou alienação mental das pessoas que diziam ver o que não existia.” A sua “aventura” ocorrida na Espadana, lugar da freguesia de Almaceda (Castelo Branco), no dia 24 pelas 10 horas, ressaltava como testemunhas os seus amigos “padre António Martins do Rosário, João Gomes Afonso, regedor, e Manuel Gomes, comerciante, todas pessoas idóneas e suficientemente cultas para não acreditarem em fantasmas”, finalizou.
Segundo o pseudo-autor César Francisco Cardoso, que assinou a carta, natural de Almaceda e residente na época há mais de 40 anos em Lisboa, afirmou que um objeto voador tinha-se aproximado de Leste “e aterra silenciosamente a 200 metros do local onde estávamos”; “um globo terrestre de gigantescas dimensões, com uma parte giratória em ambos os polos e uma cinta transparente por onde se podia descortinar no interior do engenho vultos a mexer, na linha de Capricórnio»; ainda segundo o mesmo os dois seres que abandonam a nave apanhavam «pequenas porções de terra e pedras e cortavam ramos de todas as plantas que viam, metendo tudo dentro de uma caixa de tal maneira brilhante que a não podíamos fixar por muito tempo». Ainda segundo a carta comentou a incapacidade de um dos gigantes para permanecer durante muito tempo na nossa atmosfera: “A cambalear, articulou alguns sons, a que o outro respondeu. E correndo para ele tirou da caixa qualquer coisa que não conseguíamos distinguir, tirou-lhe o capacete, colocou-lhe o que tinha tirado da caixa, voltou a pô-lo na cabeça do colega e o gigante, que parecia desmaiado, reagiu imediatamente.”
Por fim, transmite a informação decisiva: a confirmação de contacto alienígena com o grupo da Gardunha: “Chegaram perto de nós, pararam e miraram-nos dos pés à cabeça, articulando sons que deviam certamente ser a fala deles. Vendo que os não compreendíamos, faziam gestos que nos deu a impressão de serem convites para irmos com eles, pegaram-nos nas mãos delicadamente e levaram-nos até junto do engenho (…) Conseguimos fazer-lhes ver que não queríamos ir (…), entraram para o globo, fechou-se a porta, as faíscas voltaram a sair por todos os poros do engenho, e este elevou-se verticalmente no espaço e desapareceu com uma velocidade vertiginosa rumo ao Sul.”
Sem qualquer dúvida, muita imaginação e criatividade pessoal nas demais personagens envolvidas, conforme suspeitas levantadas pelo agente da GNR, numa época em que surgiam com muita frequência notícias de todo o mundo sobre avistamentos de fenómenos até então designados como discos voadores.
O autor ainda se declarou céptico no momento da sua comunicação, afirmando “confesso que nunca acreditei na existência de tais engenhos, levando sempre o caso para fenómenos atmosféricos ou alienação mental das pessoas que diziam ver o que não existia.” Faz-nos reter sem dúvida na sua imparcialidade.

1 – O pretenso escritor da carta, César Francisco Cardoso, a fazer a sua assinatura (perante o jornalista) para comparação de caligrafia, na época; 2 – Carta de Francisco António Freire a reivindicar-se como tendo sido o único responsável da carta divulgada pelo jornal, tendo forjado a assinatura; 3 – Francisco Freire na redacção do “Diário de Lisboa” na entrega da carta onde assume responsabilidades na emissão da carta inicial; 4 – Habitantes da pequena aldeia de Almaceda (lavrador e regedor) a prestar declarações sobre o perfil local de César Cardoso; 5 – Interrogatório á empregada dos CTT sobre a expedição da correspondência; 6 – O jovem Tenente Pimenta de Castro, da GNR de Castelo Branco, a interrogar o principal visado na história do disco voador.
Com o apurar dos factos anunciados e respectivas fontes de informação, o Posto da GNR de Castelo Branco (comandado pelo jovem Tenente Pimenta de Castro) realizou um interrogatório com todos os intervenientes suspeitos, tendo chegado posteriormente à conclusão que haveria incertezas sobre o autor da missiva que despoletou interesse social em ter conhecimento da história.
Com tanta agitação social que a notícia envolveu a comunidade de leitores do “Diário de Lisboa”, a administração não perdeu tempo a desmarcar-se da situação ao garantir que “reserva-se o direito de eventualmente mover, contra os mistificadores, ação judicial pelo dano moral que porventura se entenda daí lhe ter advindo”.
Foi neste ultimato, que o sobrinho de César Cardoso, Francisco Freire, que era porteiro do Hotel Tivoli (em Lisboa), apresentou-se na redação do jornal como sendo o autor do logro criado.
E tudo ficou mais claro na verdadeira intenção ou sem ela, que de forma desenfreada teve o sucesso curto que merecia, num anúncio (muito previsível) onde seres de “outros mundos” teriam aterrado numa aldeia muito distante de todos.
Não fosse uma história mirabolante e detractora do tema com que lidamos diariamente, que recai na intenção clara de trazer melhorias para uma aldeia do interior, numa época socialmente muitíssimo difícil de viver e esquecida no tempo.
Valeu nesta história de Almaceda, que passados dois anos, ter a desejada estrada para a sua aldeia.
É importante ressaltar a atenção para os contornos criativos envolvidos que, muita das vezes, nos levam a sair da imparcialidade de análise, por manifesta falta de investigação.
Nos arquivos da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), estão mencionados pormenores sobre Francisco António Freire, como natural de Almaceda, tal como a maior parte dos trabalhadores do Hotel Tivoli, tendo sido porteiro até 1955.
Infelizmente para todos nós, estudiosos reconhecem que determinados actos de criatividade não induzem certamente a uma melhor aceitação e credibilidade de uma comunidade, mas a elevação à recriação espontânea leva-nos a compreender tais atitudes (embora sejam discriminatórias).
Assim foi esta história bem criativa que, juntamente com tantas outras, suscitam momentos de angústia de alguns que, procurando alimentar o ego pessoal e da comunidade, ficam em falta com o verdadeiro juízo de valores quando responsavelmente decidem transmitir uma notícia.
O processo de arquivo da PIDE (nº9717-SC/CI), que está na Torre do Tombo, encerra com muitas ocorrências de objectos voadores, incluindo entidades humanóides e robots, entre muitas outras descrições, que são uma verdadeiro achado histórico pela extensão de relatórios avulsos sobre estas fenomenologias.
Certamente, “Almaceda” não será a primeira nem a última história do nosso descontentamento. Somente com uma investigação apurada e contextualmente plausível é que conseguiremos obter respostas científicas que mereçam o seu genuíno enquadramento nos designados Não Identificados.